João Negrão
(Foto: Mario Friedlander)
A cientista social e produtora cultural mato-grossense Jackeline Silva, que mora em Brasília há quase três anos, prepara o lançamento do catálogo Afro Paladar Nutrindo a Cultura. A produção é o resultado de uma pesquisa sobre a tradição alimentar e o cotidiano das comunidades quilombolas de Mato Grosso, sistematizados numa publicação com fotos e informações sobre comidas dos remanescentes de quilombos e festas de santo das comunidades.
O projeto contou com recursos da Secretaria de Estado de Cultura de Mato Grosso, por meio do edital Tradições.
Jackeline, uma herdeira de comunidade quilombola de Mato Grosso, se lançou a uma viagem pelas dezenas de comunidades remanescentes de quilombos existentes em seu estado e de lá extraiu não apenas receitas de uma vasta e rica culinária da tradição africana, mas também com elementos da cultura indígena, tão forte em Mato Grosso.
"Com a ideia do catálogo, de início, a minha intenção era descobrir quais são as receitas, tanto as do cotidiano, como aquelas elaboradas para as festas de santo e outras celebrações que ocorrem nas comunidades quilombolas”, relata.
A sensibilidade apurada de Jackeline a levou, no entanto, mais longe. “Durante o trabalho eu percebi que não queria publicar mais um ‘livro de receitas’, com métodos, ingredientes, passo a passo e etc.”, pontua. “E foi então que resolvi dar uma nova vertente ao projeto e focar mais no elemento humano, que é a pessoa quilombola, os membros das comunidades, o que eles fazem, como vivem e interagem, do que se alimentam, em que circunstâncias isso acontece”, relatou ela. “Porque também a elaboração, a criação e a recriação de pratos é um saber que é transmitido”.
O projeto do catálogo teve como curador convidado o chef Alício Charoth, que trabalha com terreiros e quilombolas da Bahia. Com uma experiência acumulada há mais de 35 anos, Alício Charoth foi cozinheiro chefe e sócio-gerente de restaurantes conceituados em Salvador (BA), com vasta experiência no mercado europeu mais precisamente em Portugal e Espanha.
Em suas pesquisas, Jackeline pode ver todo o ritual da elaboração dos pratos e todo o envolvimento da comunidade no momento de se alimentar e a seus convidados ou chegantes. “O mais interessante é verificar que tudo isso é feito de forma coletiva, que as pessoas se reúnem para preparar uma festa de santo, o famoso mutchirum [mutirão, na pronúncia deles] que a gente conhece. Esse aspecto diferencial é que eu queria enfatizar”, descreve.
Outra situação que despertou o interesse de Jackeline Silva é o protagonismo das mulheres, em especial as mulheres negras, no cotidiano e nos rituais das comunidades quilombolas. “Me sobressaíram neste projeto as mulheres quilombolas. Nas comunidades visitadas, a maioria das entrevistas foram feitas com mulheres”, destacou.
O olhar de pesquisadora de Jackeline e sua própria herança cultural, permitiu a ela observar o que essas comunidades oferecem. “É um trabalho acima de tudo prazeroso, porque quando falamos da alimentação a gente quebra certas barreiras e acessa aquilo que as pessoas têm de melhor e que querem compartilhar”, descreve.
Muito embora o povo simples seja muito acolhedor com seus visitantes, em qualquer parte do país, em Mato Grosso, especialmente Cuiabá e suas comunidades ribeirinhas e tradicionais, há algo de muito peculiar em relação à hospitalidade. Jackeline observou e transcreve em seu trabalho esta particularidade dos quilombolas que, invariavelmente, envolve o alimento.
“Pensando na premissa da hospitalidade cuiabana e mato-grossense, do acolhimento, de você tratar bem as pessoas que chegam à sua casa ou à sua comunidade, o alimento é a forma de se estabelecer comunhão com a visita, ou até mesmo quando se oferta o alimento para que a pessoa leve, criando um laço de pertencimento”, explica. “E isso se reproduz também nas festas de santo, quando as pessoas dão a comida de graça, quando você está compartilhando a abundância, a fartura, a generosidade”.
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