Aline Almeida
Revista Única
Orientação é para que pais fiquem atentos a mudanças de comportamento e conversem mais com as criançasOrientação é para que pais fiquem atentos a mudanças de comportamento e conversem mais com as crianças
Mais de 90% dos estupros contra menores foram causados por abusadores que compartilham laços sanguíneos ou de confiança com a família da vítima. O percentual foi revelado em estudo realizado no ano passado pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados, em parceria com a Associação de Educação do Homem de Amanhã de Brasília (HABRA). Em Mato Grosso, a realidade não é diferente. Pais, padrastos, tios, avós, vizinhos e outros são apontados como principais abusadores. No Estado, todos os dias, uma média de quatro menores são vítimas de abuso sexual.
Dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública confirmam que, em 2019, 1.590 vítimas entre 0 a 17 anos foram estupradas. Cuiabá apresentou 243 registros, enquanto em Várzea Grande foram 118.
Responsável pela Delegacia da Mulher, Idoso e Criança, em Várzea Grande, o delegado Cláudio Alvares Sant’Ana destaca que o crime de abuso sexual envolvendo crianças e adolescentes tem, em 97% dos casos, o suspeito como alguém próximo da vítima. Parentes, amigos e vizinhos estão entre os principais. “Quase não existe a figura do pedófilo que fica na praça oferecendo balas para as crianças. Abusos sexuais cometidos por estranhos figuram em 3% dos casos”, pondera.
Cláudio destaca que os abusadores se valem da condição de confiança que têm com a família e a criança para praticar o crime. O delegado ressalta que é necessário que os pais atentem aos sinais que revelam que a criança pode estar sendo uma vítima. Isso porque, na maioria dos casos, a criança ou adolescente vítima não fala diretamente do crime para o pai ou a mãe. “Eles se sentem ameaçados, sentem medo, vergonha e até mesmo culpa”, salienta.
Mesmo não falando, Cláudio pondera que as vítimas emitem sinais e mudanças no comportamento, mostrando que estão sendo abusadas. Como exemplo, o delegado cita situações em que crianças de 3 anos brincam com bonecas tirando a roupa do brinquedo e colocando-o em posição sexual. “São coisas incompatíveis com a idade. Não quer dizer obrigatoriamente que a criança está sendo vítima, mas é um sinal a ficar alerta”, diz.
Outro fator que merece destaque, conforme Cláudio, é que as crianças também costumam expressar relatos de abusos por meio de desenhos. Mudança de comportamento, queda no desempenho escolar e até automutilação são sinais de alerta. “É preciso ficar atento a uma mudança de comportamento repentina. A criança brinca, conversa e de repente fica introspectiva. Também ao fato de o menor aprender com facilidade e ter boas notas e, de repente, apresentar dificuldades de aprendizagem. Atentar também aos casos de crianças que evitam interação social”.
Cláudio Alvares reforça que a primeira dica que a Polícia Civil deixa para evitar casos de abusos sexuais contra menores é “nunca confiar em ninguém”. “Como sei que a maioria dos casos o suspeito é quem está do lado, não posso confiar em ninguém, independente do grau de parentesco”, afirma.
Outra dica importantíssima para combater os casos é que se quebre o tabu em se falar de abuso, principalmente na família. “Achar que o caso acontece só no vizinho, só no bairro ao lado, faz com que muitas pessoas prefiram não falar. Isso é um erro. Abuso sexual infantil é uma realidade que acontece todo dia. Não é cena de filme”, reforça.
Cláudio diz que é muito importante que os pais conversem sobre o assunto com os filhos, claro, adequando a forma de falar com cada idade. Ele ressalta que a maioria dos casos chegam à delegacia por meio de professores ou de conselheiros tutelares. Essa barreira que existe na família faz com que muitas crianças sequer relatem os abusos. Há muitos casos que não chegam ao conhecimento das autoridades exatamente por esta falha. “A família precisa entender seu papel. Há casos de crianças que relatam para as mães, que não acreditam no crime pelo fato de o suposto abusador ser alguém próximo. É importante ouvir a criança”, diz.
Alvares cita que o combate ao abuso sexual infantil apresentou muitos avanços ao longo dos anos. A começar pela presença de uma rede de proteção, que faz com que as crianças se sintam empoderadas e amparadas a denunciar. “Outro avanço é que, antes, as pessoas achavam que este era um assunto a se resolver na família, mas já entendem que este é um crime e um problema de segurança pública”, destaca.
Conselheiro tutelar Wagner Vinícius
“Quando vamos para dentro das escolas, por exemplo, levamos informações. Isso inibe que mais crianças sejam violentadas. A criança munida de informação sabe se defender. Sabe que pode contar, a partir do momento que tem um direito violado”, diz o conselheiro tutelar Wagner Vinícius de Lima.
Conselheiro tutelar Wagner Vinícius de Lima pondera que, hoje, os conselhos tutelares são considerados a porta de entrada quando se fala em abuso sexual infantil. No entanto, lembra que existe toda uma rede para que crianças e adolescentes estejam melhores amparados neste momento. Hospitais, delegacias, Instituto Médico Legal e atendimento psicossocial são alguns dos envolvidos que fazem com que as vítimas sejam assistidas da melhor forma possível.
O que tem sido observado ao longo dos anos, segundo o conselheiro, é o aumento de casos de violência sexual contra menores. E, de fato, a maioria esmagadora é de abusadores do meio intrafamiliar. Por isso, toda e qualquer mudança de comportamento das crianças deve ser observada com atenção pelos pais. “Podemos constatar que os pais estão mais cientes do dever de proteger as crianças, assim como a sociedade mais observadora e consciente do dever de denunciar”, afirma.
Wagner lembra que era muito comum que crianças sofressem abusos e não denunciassem pela pressão que sofriam. Até mesmo mães que acobertavam os abusos por conta de depender financeiramente do abusador. Parte deste avanço deve-se ao acesso à informação e também da presença real de mecanismos de proteção e amparo para as vítimas. “Uma rede de proteção funcionando significa que teremos muito menos crianças com direitos violados. Temos, sim, casos escondidos e muitos menores que ainda continuam sendo vítimas. É nisso que precisamos avançar. Suporte temos, precisamos que estes casos saiam do anonimato”, diz.
Uma das formas mais adequadas para estimular as crianças a denunciar, segundo Wagner, é fazer com que a informação chegue até elas. O Conselho Tutelar realiza palestras nas escolas, em igrejas e outros locais de acesso. O objetivo é levar medidas de prevenção a estes crimes. No entanto, o conselheiro alerta que ainda é pequena a quantidade de pessoas capacitadas a levarem essas informações. Para ele, há a necessidade de estender ainda mais o trabalho preventivo realizado pelo Conselho Tutelar.
Delegado Claudio Álvares
“É necessário que os pais atentem aos sinais que revelam que a criança pode estar sendo uma vítima. Isso porque, na maioria dos casos, a criança ou adolescente vítima não fala diretamente do crime para o pai ou a mãe. Eles se sentem ameaçados, sentem medo, vergonha e até mesmo culpa”, frisa o delegado Cláudio Alvares.
“Quando vamos para dentro das escolas, por exemplo, levamos informações. Isso inibe que mais crianças sejam violentadas. A criança munida de informação sabe se defender. Sabe que pode contar, a partir do momento que tem um direito violado”, complementa.
Outros dados – 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado ano passado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta recorde nos crimes de violência sexual. Foram 66 mil vítimas de estupro no Brasil, maior índice desde que o estudo começou a ser feito, em 2007.
A maioria das vítimas (53,8%) foram meninas de até 13 anos. Conforme a estatística, apurada em microdados das secretarias de Segurança Pública de todos os estados e do Distrito Federal, quatro meninas até essa idade são estupradas por hora no país. Ocorrem, em média, 180 estupros por dia no Brasil. De cada dez estupros, oito acontecem contra meninas e mulheres e dois contra meninos e homens. A maioria das mulheres violadas (50,9%) são negras.
A descoberta do perigo ao lado
M.R.S., 25 anos, vivenciou essa triste realidade dentro da própria casa, em Várzea Grande, após flagrar seu marido abusando sexualmente de sua filha de 6 anos – enteada dele. Apesar do trauma e da insegurança, ela teve coragem de denunciá-lo e ficou ao lado da filha, enfrentando as dificuldades para criá-la sozinha com mais dois filhos, menores de dois anos, que ela teve com o ex-companheiro.
“Eu tive medo de ir à delegacia e ele querer voltar e fazer as coisas com as meninas, mas mesmo assim eu fui, registrei o boletim de ocorrência e agora está pela Justiça. Espero que ele seja pego e pague pelo que ele fez. Se ele vai para outro lugar, vai querer fazer com outras crianças”, lamenta a mãe.
Ela foi casada por cinco anos e não percebeu nenhum comportamento suspeito que viesse a apontar o abuso sexual que ele cometia contra a filha. O ex-marido frequentava a igreja, era querido pelas pessoas de seu círculo social e tratava a enteada bem. De algum tempo para cá, a filha começou a apresentar comportamentos estranhos, como medo do escuro, medo de ficar sozinha e excesso de sono na escola. Juntando todas as peças, M.R.S. acabou pegando o abusador no ato.
“Nenhuma mãe merece passar o que eu passei. Nós éramos casados, eu gostava muito dele e ele parecia que gostava de mim, não sei se era mentira. Graças a Deus eu tive força e espero que ele seja pego. Ele tem que pagar pelo que fez”, acrescenta.
Agora, o processo que M.R.S. e a filha estão vivendo é o de superar o trauma, o que é possível com acompanhamento psicológico. “É uma ferida que ninguém cura. Mas, graças a Deus, minha filha não é mais vítima deste criminoso.”
Mobilização e informação fazem com que mais vítimas denunciem
No intuito de combater este tipo de crime, o Ministério Público do Estado de Mato Grosso (MPE) promove campanhas de conscientização em escolas, para identificar crianças e adolescentes que estejam sofrendo abusos em casa. O órgão ministerial elaborou uma cartilha de prevenção ao crime. O material está disponível para consulta da população. Intitulado “Abuso sexual contra crianças e adolescentes: Ajude-nos a mudar esta página”, a cartilha está inclusive disponível para download na internet.
A cartilha traz pesquisa especializada, que aponta que uma a cada quatro meninas e um a cada 10 meninos é vítima de violência sexual antes de completar 18 anos em todo o mundo. O abuso sexual contra crianças e adolescentes ocorre em tão expressiva quantidade que é considerado um problema de saúde pública, que ocasiona sérios prejuízos para as vítimas, envolvendo aspectos psicológicos, sociais e legais.
O problema é agravado pelo medo e vergonha das vítimas que, indefesas, sofrem abusos reiterados por longo período de tempo e, muitas vezes, quando finalmente criam coragem de denunciar o abusador, padecem pela pressão da família e de pessoas próximas, que não raras vezes, desacreditam em suas versões, quando não as acusam de terem “provocado” os abusos. O documento revela ainda que, até muito recentemente, o abuso sexual de crianças e adolescentes era um assunto proibido na sociedade. Entretanto, o número alarmante de casos revelados atualmente demonstra que, felizmente, paulatinamente, de alguns anos para cá, esse tabu vem sendo quebrado, o que certamente será preponderante para a modificação dessa perversa realidade.
Caracteriza abuso sexual infantil e juvenil qualquer tipo de contato de pessoas de 0 a 17 anos, com alguém em estágio psicossexual mais avançado de desenvolvimento (maiores de 18 anos ou não), na qual a criança ou adolescente for usado para estimulação sexual de outras pessoas.
A definição do abuso não exige a concretização de uma relação sexual completa, tampouco a efetiva introdução ou penetração de dedos, objetos ou membro na vagina, ânus ou boca da vítima, bastando para sua configuração qualquer espécie de interação sexual, que pode incluir toques e carícias, sendo certo que o abuso sexual também inclui situações nas quais não há qualquer tipo de contato físico, que ocorrem quando crianças e adolescentes são forçados a assistir atos sexuais ou obrigados a se despir ou auto-acariciar para serem vistas por terceiros, pessoalmente ou não.
“Portanto, constitui abuso sexual qualquer imposição às crianças ou adolescentes de ações que visem à satisfação sexual de outrem, conseguidas por meio de violência física, ameaças ou indução de sua vontade (sedução e estimulação sexual precoce)”, cita trecho da cartilha.
Muitas vezes a criança ou o adolescente não sabe ou não tem certeza de que está sofrendo abuso sexual, pois na maior parte dos casos, os abusadores são conhecidos das vítimas e se aproveitam desta proximidade para ganhar a confiança delas, fazendo brincadeiras, oferecendo doces, brinquedos, fazendo companhia, razão pela qual as vítimas possuem, geralmente, grande afeição pelo abusador, o que dificulta as denúncias e a elucidação dos fatos.
Caracteriza abuso sexual o ato de passar a mão em qualquer parte do corpo da criança e do adolescente, desde que este contato tenha alguma conotação sexual, como passar a mão nas pernas da vítima, esfregar-se no seu corpo, introduzir dedos ou outros objetos em sua vagina ou ânus, passar a mão nos seios, obrigar a criança ou o adolescente a acariciá-lo de alguma maneira ou expô-los a cenas sexuais impróprias de qualquer maneira, seja pelo computador, pela televisão ou pessoalmente.
“Muitas vezes o perpetrador sequer toca na criança ou adolescente, mas a filma, fotografa ou simplesmente a observa de maneira lasciva, sugerindo ou determinando que fique despida de forma total ou parcial para que possa registrá-la de alguma maneira ou apenas contemplá-la”, destaca Ministério Público.
Infelizmente, o abuso sexual deixa marcas no corpo e, sobretudo, na mente das vítimas, sendo muitas dessas sequelas gravíssimas, razão pela qual a psiquiatria equipara o trauma ocasionado pela violência sexual aos malefícios, angústias, sofrimentos e dores decorrentes da perda de filhos (luto por morte), tamanho é o impacto negativo de tais ações, nas quais, segundo os especialistas, a vítima perde até mesmo sua perspectiva de futuro.
Como denunciar os crimes sexuais
As denúncias podem ser feitas por algum profissional ou por qualquer pessoa da população em geral.
• Conselho Tutelar;
• Conselho Tutelar;
• Disque 100 ([email protected] - canal gratuito e anônimo);
• Escolas com professores, orientadores ou diretores;
• Delegacia Especializada da Mulher, Criança e Idoso; Delegacias;
• Polícia Militar - 190;
• Polícia Federal;
• Polícia Rodoviária Federal - 191;
• Em casos de Pornografias na Internet, denuncie em: www.disque100.gov.br
• Ministério Público. Disque 127. Ouvidoria do MP
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