Por Carolina Montenegro - BBC Brasil
Reprodução / Internet
Foram sete horas debaixo de chuva e 551 migrantes resgatados em uma operação de alto risco no mar. A BBC Brasil acompanhou na semana passada, no porto de Catânia, na Itália, o desembarque do navio Aquarius, logo após uma ação de resgate no Mediterrâneo para salvar a vida de refugiados em embarcações precárias.
A operação começou no domingo, quando a ONG Médicos Sem Fronteiras recebeu um pedido de ajuda para socorrer um barco de madeira no Mediterrâneo.
"O barco de madeira tinha dois níveis e o andar debaixo estava começando a inundar. Era uma emergência, tínhamos que agir muito rápido", contou Jacob Goldberg, coordenador médico do MSF, que comanda o barco Aquarius junto à ONG SOS Mediterranée.
"Chegamos ao local e colocamos pequenas lanchas na água. Mas ao mesmo tempo um outro bote de borracha também pediu resgate. O que acabou acontecendo foi um resgate conjunto do barco de madeira e do bote de borracha, usando quatro lanchas", explicou Goldberg.
O fato de serem dois barcos ao mesmo tempo, com centenas de pessoas a bordo, tornou o resgate um dos mais arriscados e complexos já realizados pelo Aquarius, em ação no Mediterrâneo desde maio deste ano.
Neste episódio, foram salvas 551 pessoas, entre elas 120 mulheres e 202 crianças e adolescentes, sendo 147 não acompanhadas (sozinhas desde o início da jornada ou por terem perdido seus pais). Dezoito tinham menos de cinco anos de idade, e havia também três bebês e nove mulheres grávidas.
Deserto e mar
A maioria dos resgatados vinha da Eritreia (392 pessoas), mas também havia refugiados da Somália, Síria, Mali, Níger, Guiné-Conacri, Guiné-Bissau, Etiópia, Gana, Gâmbia, Senegal e Bangladesh.
"Agora que chegamos à Itália estamos seguros. Passamos horas no mar, achei que fosse morrer", desabafou um jovem eritreu de 26 anos. Ele aguardava dentro do Aquarius a sua vez de desembarcar, ao lado de quatros amigos que tinham feito a travessia do mar juntos. Antes disso, foram meses no deserto cruzando o Sudão e o Egito para chegar à Líbia e pegar um barco rumo à Europa.
Outro rapaz de 21 anos de Gana celebrava a chegada à Europa. "É a primeira vez em quase um ano que me sinto de novo como um ser humano. Na Líbia me trataram pior do que um cachorro. Aqui eu vejo respeito", afirmou apontando para os suportes de madeira sob o chão do porto que a Guarda Costeira tinha improvisado para cobrir as poças de água da chuva e os refugiados não molharem os pés.
Durante o desembarque, mulheres e crianças desciam do Aquarius primeiro, passavam por um rápido check-up médico, recebiam água e alimentos com a Cruz Vermelha e seguiam para o registro e coleta de impressões digitais com o governo italiano.
Dali, os doentes eram encaminhados para hospitais e os demais partiam em ônibus para centros de acolhida.
"Estamos vendo um número muito grande de crianças e mulheres fazendo essa jornada em circunstâncias incrivelmente perigosas. É realmente chocante", disse Goldberg. "Precisamos de uma responsabilidade global e não simplesmente deixar barcos humanitários resgatando pessoas no mar, porque ssa não é uma solução - não é possível resolver este problema no mar."
Desde o ano passado, o MSF realiza operações de resgate no Mediterrâneo, com três navios. A organização humanitária defende que os países da Europa garantam rotas seguras para os refugiados.
Isso porque, incapazes de obter vistos ou pedir refúgio em seus países de origem, milhares fogem de guerras e extrema pobreza, pagam atravessadores e arriscam suas vidas no mar em busca de uma nova vida na Europa.
Relatório da OIM publicado na semana passada também denunciou o Mediterrâneo como a rota de migração mais letal no mundo hoje, registrando 78% do total mundial de migrantes mortos e desaparecidos. A fronteira do México com os EUA, por exemplo, registra 4%.
Em comparação com 2015, o primeiro semestre de 2016 viu um salto de 67% nas mortes e desaparecimentos no Mediterrâneo, a maior parte na região central, entre a Líbia e a Itália (2.726 pessoas).
Um dos motivos por trás desse aumento seriam as táticas cada vez mais perigosas sendo usadas por traficantes de pessoas, como lotar barcos de borrachas sem segurança e lançar vários barcos ao mesmo tempo no mar para despistar a polícia líbia.
Apenas nesta terça-feira, a Guarda Costeira italiana salvou 6,5 mil pessoas no mar em 40 operações de resgate. É o número mais alto de pessoas já resgatadas em um dia.
Entre a vida e a morte
Em operações de emergência como esses resgates no Mediterrâneo, cada minuto pode fazer a diferença para salvar a vida de refugiados à deriva no mar.
"No final de julho, recebemos um pedido de socorro, mas estávamos a 2 horas do local. Quando chegamos vimos que uma tragédia tinha acontecido. O piso do barco de borracha havia quebrado e água do mar começou a entrar misturada com gasolina que tinha vazado de um contêiner aberto. Isso criou uma mistura que intoxicou muita gente no barco", contou Goldberg.
"Como o barco estava lotado, as pessoas começaram a se jogar uma sob as outras, literalmente lutando para sobreviver, e o resultado foi que 22 delas se afogaram no fundo do barco,sendo 21 mulheres. Quando chegamos, resgatamos os 250 sobreviventes que estavam extremamente traumatizados e recuperamos todos os corpos".
Apenas 1 dos 22 corpos pôde ser identificado porque era da esposa de um homem que tinha sido resgatado com vida. Todas as outras 20 mulheres nunca foram identificadas e suas famílias provavelmente nunca irão conhecer seu trágico destino.
"Aquele momento para mim foi o mais difícil que vivi a bordo até agora. Foi trágico e devastador ver pessoas jovens e saudáveis mortas desta maneira", disse Goldberg.
O momento mais feliz, por outro lado, foi quando ele fez um parto a bordo. "Era meados de maio. Uma mulher foi resgatada e estava com nove meses de gravidez. Pouco depois ela entrou em trabalho de parto e teve o bebê dentro do nosso navio. Foi um momento muito emocionante que trouxe muito otimismo para todos a bordo", afirmou Goldberg.
"Às vezes você conhece pessoas extraordinárias a bordo, às vezes bebês nascem a bordo, são experiências incríveis", acrescentou.
Do lado de fora, na popa do Aquarius, um grupos de 20 eritreus cantava, batendo palmas e dançando. Eles ainda esperavam para desembarcar, depois de horas em pé sob a tempestade. Mas a chuva tinha parado e ao fundo agora se via um horizonte coberto de igrejas, palácios e domos italianos.
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