Euziany Teodoro
Única News
O ministro presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, finalmente julgou a ação da Prefeitura de Cuiabá contra a decisão judicial que impôs quarentena obrigatória na capital. Toffoli reconheceu que houve invasão de competência e mandou suspender a decisão original, tomada em 22 de junho, pelo juiz José Leite Lindote, da Vara de Saúde Pública de Mato Grosso.
Na ação, o prefeito Emanuel Pinheiro sustentou que houve violação ao princípio da separação dos Poderes, aduzindo que “o juízo prolator da decisão reclamada “determinou diretamente medidas de contenção a proliferação da doença, a serem observadas pelo Município, sem qualquer respaldo técnico e cientifico para tanto” e que “assumiu de forma indevida o protagonismo das ações de prevenção e combate ao novo coronavírus na capital mato-grossense, substituindo o próprio administrador público, eleito democraticamente”.
Toffoli concordou que Lindote criou uma “nova hierarquia”, determinando que o decreto municipal só poderia ser mantido naquilo que conflitasse com a própria decisão judicial e com o decreto estadual nº 522/2020, que adotou classificação de risco de contaminação da pandemia e as medidas recomendadas.
“Como se pode observar, o juízo de origem considerou que o Decreto Municipal deveria prevalecer apenas no que não conflitasse com sua decisão ou com o Decreto Estadual nº 522/2020, criando, assim, uma ordem de hierarquia entre os comandos de uma e outra norma dos entes federativos, o que, salvo melhor juízo, destoa do quanto decidido nos autos a ADI nº 6341 (no bojo da qual, repise-se, a título de essencialidade dos serviços, restou definida a competência legislativa de todos os entes no âmbito de suas respectivas atribuições constitucionais).”
Para Toffoli, ao determinar a quarentena, Lindote não fundamentou, com dados técnicos, sua decisão, de modo a provar que as normas previstas no decreto estadual nº 522/2020 deveriam prevalecer sobre as normas municipais.
“Note-se que embora a decisão de origem consigne que “os decretos editados nem de longe se enquadram nas Normas Cientí
"Não parece ter havido a efetiva demonstração do porquê os critérios técnicos adotados pelo estado estariam em posição de maior evidência científica", disse
ficas e do Decreto Estadual”, o que deixaria “claro que as atividades essenciais foram classificadas de modo aleatório, ao talante do administrador”, não se observa a devida fundamentação quanto ao ponto, ou seja, não parece ter havido a efetiva demonstração do porquê os critérios técnicos adotados pelo estado estariam em posição de maior evidência científica do que os utilizados pelo Município em seu Decreto”, escreveu.
Assim, concedeu tutela de urgência e suspendeu a decisão de origem da quarentena obrigatória.
“Ausente, assim, fundamentação apta a justificar a prevalência de uma norma sobre outra, e ausente ainda indicação de eventual normatização do Município em matéria de competência estadual, considero ser o caso de concessão da tutela pretendida. Pelo exposto, em juízo de estrita delibação e sem prejuízo de melhor análise da causa pelo eminente Relator, concedo a tutela de urgência para suspender a decisão de origem”, concluiu.
Veja a íntegra da decisão:
DECISÃO:
Cuida-se de reclamação ajuizada por Município de Cuiabá em face de decisão proferida pelo Juízo da 1ª Vara Especializada da Fazenda Pública da Comarca de Várzea Grande-MT, que nos autos da Ação Civil Pública nº 1015037.66.2020.8.11.0002, concedeu em sede de antecipação de tutela obrigações ao Município reclamante em confronto ao que decidido pelo STF nos autos da ADI nº 6341, da ADPF 672-MC e da Suspensão de Segurança nº 5377.
Em suas alegações iniciais, aponta o Município de Cuiabá que em Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Estadual em desfavor do Estado de Mato Grosso e dos Municípios de Cuiabá e Várzea Grande, o juízo da causa deferiu a tutela de urgência pleiteada para:
“I. que os municípios de Cuiabá e Várzea Grande, nesta fase inicial, apliquem todas as medidas descritas no Art. 5º, inciso IV, do Decreto nº 522/2020, inicialmente pelo prazo de 15 (quinze) dias, a iniciar dia 25/06/2020;
II. que a circulação do transporte público coletivo seja aumentada em sua frota, somente podendo adentrar o número de passageiros sentados que o veículo comportar, não se admitindo a redução em qualquer hipótese;
III. não restrinja os horários de atividades essenciais, a exemplo de supermercado, visto que tais medidas, s.m.j., importam em incontestável aglomeração de pessoas;”
Defende que a ordem em tela corresponde “a violação ao entendimento firmado na ADI nº 6341 e ADPF 672-MC, no sentido de que cabe ao executivo (governo) em competência concorrente (União Estado e Municípios), dispor sobre os serviços públicos e atividades essenciais, no âmbito das medidas de emergência de saúde pública decorrentes da pandemia do COVID-19”.
Sustenta que houve violação ao princípio da separação dos Poderes, aduzindo que “o juízo prolator da decisão reclamada “determinou diretamente medidas de contenção a proliferação da doença, a serem observadas pelo Município, sem qualquer respaldo técnico e cientifico para tanto” e que “assumiu de forma indevida o protagonismo das ações de prevenção e combate ao novo coronavírus na capital mato-grossense, substituindo o próprio administrador público eleito democraticamente”.
Aduz, ainda, que “a decisão ora combatida acabou por chancelar medida menos restritiva de combate ao COVID-19 do que as outrora determinadas pelo Município de Cuiabá, em total contrassenso a própria fundamentação da mesma”. Em defesa de sua tese argumenta que o decisum: “obrigou o ente público a editar decreto permitindo expressamente que todas as 52 (cinquenta e duas) atividades essenciais elencadas no decreto nº 7.970/2020 (em anexo), voltassem a exercer suas atividades sem qualquer controle de horário, ou seja, na prática retornaram a praticar o mesmo horário de funcionamento de antes da pandemia.
No mesmo sentido, a frota de ônibus do transporte coletivo municipal que outrora estava reduzida por decreto municipal (atendimento tão somente das atividades essenciais), visando impedir uma maior circulação de pessoas no território municipal notadamente em horários noturnos, passou a rodar com 100% (cem por cento) da frota, mediante a determinação judicial que ora se impugna”
Aponta, ademais, que tais determinações sequer constariam no Decreto Federal nº 10.282, de 20 de março de 2020, tampouco no Decreto Estadual nº 522/2020, de modo que suas inclusões no comando judicial seriam “tão somente fruto da imaginação do magistrado prolator da decisão, que sem qualquer conhecimento técnico para tanto, entendeu por bem ditá-las ao Município sob pena de aplicação de multa diária”.
Indica, por fim, que horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais considerados essenciais e quantitativo da frota de transporte coletivo municipal seriam matérias inseridas no bojo da competência do gestor municipal.
Argui, no mesmo passo, que as matérias constantes do Decreto nº 522/2020 do Estado de Mato Grosso – de competência do gestor estadual – foram traçadas com cunho expressamente orientativo aos municípios, não cabendo ao magistrado, em âmbito discricionário do Executivo, tornar a norma impositiva.
Requer a concessão de liminar, para fins de suspender a decisão impugnada até final julgamento desta Reclamação ou, subsidiariamente, “que o efeito suspensivo incida, ao menos no que se refere aos itens II e III da decisão de piso”.
É o relatório. Decido.
Tenho por urgente a apreciação do pedido liminar, dados os impactos da decisão combatida sobre a política pública de contenção ao COVID-19 no Município reclamante.
Observo, de outro lado, nessa análise precária que competência à Presidência em períodos de recesso judicial, a razoabilidade das argumentações autorais quanto a possível violação ao que restou decidido por esta Corte nos autos da ADI nº 6341.
De fato, pelo acórdão paradigma (ainda não publicado), o Plenário desta Corte concedeu parcialmente medida cautelar para dar interpretação conforme à Constituição ao § 9º do art. 3º da Lei 13.979, a fim de explicitar que, preservada a atribuição de cada esfera de governo, nos termos do inciso I do artigo 198 da Constituição, o Presidente da República poderá dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais.
Tal decisão, que já evidencia por si a preservação da “atribuição de cada esfera de governo”, se estabeleceu a partir das seguintes diretrizes, nos termos do voto condutor apresentado pelo Min. Edson Fachin, que aqui sintetizo:
1. O Estado Democrático de Direito implica o direito de examinar as razões governamentais e o direito de criticá-las. Os agentes públicos agem melhor, mesmo durante emergências, quando são obrigados a justificar suas ações;
2. Como os agentes públicos devem sempre justificar suas ações, é à luz delas que o controle a ser exercido pelos demais poderes tem lugar;
3. O Estado garantidor dos direitos fundamentais não é apenas a União, mas também os Estados e os Municípios;
4. A diretriz constitucional da hierarquização, constante do caput do art. 198 não significou hierarquização entre os entes federados, mas comando único, dentro de cada um deles;
5. Sob a luz da Lei 8.080, de 1990, o exercício da competência da União em nenhum momento diminuiu a competência própria dos demais entes da federação na realização de serviços da saúde, nem poderia, afinal, a diretriz constitucional é a de municipalizar esses serviços;
6. O direito à saúde é garantido por meio da obrigação dos Estados Partes de adotar medidas necessárias para prevenir e tratar as doenças epidêmicas e os entes públicos devem aderir às diretrizes da Organização Mundial da Saúde;
7. Como a finalidade da atuação dos entes federativos é comum, a solução de conflitos sobre o exercício da competência deve pautar-se pela melhor realização do direito à saúde, amparada em evidências científicas e nas recomendações da Organização Mundial da Saúde.
Nota-se, portanto, que esta Corte explicitou que a competência prevista no § 9º do art. 3º da Lei 13.979/20 ao Presidente da República (para dispor sobre os serviços públicos e atividades essenciais) se faria sem prejuízo à atribuição de cada esfera de governo de dispor sobre o mesmo tema no seu respectivo âmbito de atuação e, para tanto, como fundamento de decidir, destacou a diretriz constitucional da municipalização dos serviços de saúde, embora, de outro lado, e também como razão de decidir, não descurou da necessidade de justificação pelos agentes públicos de suas ações.
Dito isso, observo que a decisão cuja suspensão se pretende por meio desta Reclamação iniciou sua fundamentação apreciando as normas editadas nas esferas nacional e estadual. Destaco os trechos de maior interesse à presente análise:
“Em resumo, restringir as atividades não essenciais é medida indisponível e amparada na Carta Magna, pois "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação" (art. 196).
(…) No plano legislativo nacional, editou-se a Lei 13.979/2020, que, em seu art. 3°, dispôs sobre medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento da pandemia, dentre as quais: isolamento, quarentena, determinação de realização compulsória de exames etc. Já em plano estadual, o Decreto nº 424 de 23/05/2020 declarou estado de calamidade pública no âmbito da Administração Pública Estadual, em razão dos impactos socioeconômicos e financeiros decorrentes da pandemia causada pelo agente Coronavírus (COVID-19). Assim dispôs:
“Art. 1º Fica decretado estado de calamidade pública no âmbito da Administração Pública Estadual, em razão dos impactos socioeconômicos e financeiros decorrentes da pandemia causada pelo agente Coronavírus (COVID-19), inclusive para os fins prescritos no art. 65 da Lei Complementar Federal nº 101, de 4 de maio de 2000. Parágrafo único. A situação de calamidade de que trata o caput vigorará pelo prazo de 90 (noventa) dias, podendo ser prorrogada em caso de necessidade devidamente justificada. Art. 2º As autoridades competentes, sob a coordenação do Governador do Estado, ficam autorizadas a adotar as medidas necessárias à prevenção e ao combate à situação tratada no art. 1º.”
Em seguida o magistrado avaliou o impacto das medidas de distanciamento social adotadas, apontando considerá-las ineficazes à contenção da propagação do vírus COVID-19, o que estaria por justificar a necessidade de intervenção do Judiciário. Foram suas palavras:
“As medidas de isolamento social e de proibição temporária de atividades aglomeratórias possuem o condão de retardar o crescimento da curva de disseminação do vírus, conforme instruções das autoridades sanitárias, órgãos e entidades representativas de técnicos da área da saúde. Não obstante, notório é que as medidas atuais de distanciamento social estão se mostrando ineficazes para contenção da propagação da COVID-19, demandando do Poder Público a adoção de medidas mais intensas para evitar um colapso do sistema público de saúde, que, na região Metropolitana, já se evidencia, com a lotação máxima dos leitos de UTI destinados a pacientes com COVID-19.
Verifico, ainda, que a escassez de recursos não se resume à rede pública. Em face da competência de julgamento da presente vara, tenho firmado o entendimento de que o Sistema Público de Saúde enfrenta uma realocação inevitável de seus esforços e recursos ao tratamento dos infectados pelo COVID-19 em território estatal, bem como das vias particulares, que já se mostram quase em sua capacidade total de atendimento.
A situação endêmica requer do judiciário o sobrepesamento de direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do MS nº 23.452, Rel. Min. Celso de Mello, decidiu que:
(…)
Se faz necessário constar e deixar consignado de forma clara, que o Poder Judiciário respeita a autonomia administrativa de cada gestor, somente interferindo quando chamado e restando claro que não há consenso entre as partes envolvidas e sequer na aplicação das normas cientificas para a efetivação de política pública.
Na sequência, o magistrado adentrou no exame das normas municipais, avaliando-as sob a seguinte fundamentação:
Os municípios envolvidos pleitearam a dilação de prazo e tiveram o pedido deferido até esta data, no sentido de editarem norma e efetuar comunicação a este juízo.
(...)
Consigno que não há dúvida que deverá esse Decreto prevalecer, naquilo que não conflita com esta decisão e com o Decreto Estadual nº 522/2020. O Município de Cuiabá apresentou agora (19h15) o seu ato, tendo o mesmo rumo do decreto várzea-grandense. Constata-se que os decretos editados nem de longe se enquadram nas Normas Científicas e do Decreto Estadual, deixando claro que as atividades essenciais foram classificadas de modo aleatório, ao talante do administrador, fato que não tem consistência e não pode vingar. Em suma, a matéria comporta apreciação urgente com a observação dos dados do momento vivenciado pelo Estado, e em particular por cada um dos municípios mato-grossense, e mais em especial ainda, no que tange a Cuiabá e Várzea Grande, embasado nos dados científicos trazidos pelo nível de classificação de risco definido no Art. 4º, do Decreto nº 522/2020.
(…)
Entendo, então, pela necessidade de autocontenção de prerrogativas individuais em face da calamidade pública que atualmente atinge o Estado de Mato Grosso, afetando em massa as garantias coletivas e de direito fundamental aos serviços prestacionais de saúde”.
Como se pode observar, o juízo de origem considerou que o Decreto Municipal deveria prevalecer apenas no que não conflitasse com sua decisão ou com o Decreto Estadual nº 522/2020, criando, assim, uma ordem de hierarquia entre os comandos de uma e outra norma dos entes federativos, o que, salvo melhor juízo, destoa do quanto decidido nos autos da ADI nº 634 (no bojo da qual, repise-se, a título de essencialidade dos serviços, restou definida a competência legislativa de todos os entes no âmbito de suas respectivas atribuições constitucionais).
Note-se que embora a decisão de origem consigne que “os decretos editados nem de longe se enquadram nas Normas Científicas e do Decreto Estadual”, o que deixaria “claro que as atividades essenciais foram classificadas de modo aleatório, ao talante do administrador”, não se observa a devida fundamentação quanto ao ponto, ou seja, não parece ter havido a efetiva demonstração do porquê os critérios técnicos adotados pelo estado estariam em posição de maior evidência científica do que os utilizados pelo Município em seu Decreto. Ausente, assim, fundamentação apta a justificar a prevalência de uma norma sobre outra, e ausente ainda indicação de eventual normatização do Município em matéria de competência estadual, considero ser o caso de concessão da tutela pretendida.
Pelo exposto, em juízo de estrita delibação e sem prejuízo de melhor análise da causa pelo eminente Relator, concedo a tutela de urgência para suspender a decisão de origem.
Cite-se a parte beneficiária da decisão reclamada (CPC, art. 989, III). Solicitem-se informações e comunique-se a autoridade reclamada acerca do deferimento da tutela de urgência.
Publique-se. Intime-se.
Brasília, 29 de julho de 2020
Ministro DIAS TOFFOLI
Presidente
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