Cuiabá, 26 de Abril de 2024

CIDADES Domingo, 17 de Novembro de 2019, 10:32 - A | A

17 de Novembro de 2019, 10h:32 - A | A

CIDADES / REVISTA ÚNICA

Desembargadora confirma que, a cada denúncia de violência contra mulheres, 18 deixam de ser feitas

Aline Almeida
Revista Única



Maria Erotides Kneip Baranjak é desembargadora do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, eleita em 2011. Erotides tem mais de 30 anos de magistratura, sendo 19 anos à frente do Tribunal do Júri da Comarca de Várzea Grande. A desembargadora tem uma forte bandeira na luta da violência contra mulher. Ela atua na Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça. Também é presidente da Câmara Setorial Temática (CST) de Combate à Violência contra Mulher da Assembleia Legislativa. Na entrevista, a magistrada fala do atual cenário da violência e dos encaminhamentos de proteção à mulher.

Única - Vamos iniciar falando da Lei Maria da Penha, que chega aos 13 anos de implementação. Podemos comemorar? Vidas já foram salvas por esta conquista?  

“Os números que entendemos como gritantes, não correspondem com a realidade. Debaixo do que chamamos de sagrada família, do endeusamento da família, ainda existe a violência reprimida”, ressalta Maria Erotides.

Maria Erotides – A Lei Maria da Penha tem uma especificidade. Primeiro é uma lei que não é número. Não conhecemos a lei pelo número, mas pelo nome. Uma lei que tem nome é uma lei extremamente marcante. A história da Maria da Penha é uma história que realmente comove. Foi uma mulher culta, com formação acadêmica e que conheceu o companheiro em um mestrado, em São Paulo. O caso envolve pessoas de nível médio, de uma classe social mais elevada. Isso demonstra que a violência doméstica e familiar não escolhe nível social e nem de escolaridade. Ela é produto de um caldo de cultura. A lei trouxe enormes avanços. Nós trabalhamos na violência doméstica muito antes da lei. Eu, em 1986, estava na comarca de Várzea Grande e as mulheres corriam para o Fórum. Não havia acolhimento e socorro para a mulher. O crime de lesão corporal contra a mulher dentro de casa tinha a mesma classificação de um crime de homem contra homem num boteco, por exemplo. Em 1992, eu participei de um encontro internacional de mulheres juízas em San Diego, Estado da Califórnia, e lá defendi a necessidade de uma lei específica. Passaram-se 15 anos para que a lei pudesse vir e ela só veio porque o Brasil foi instado a isso pela comunidade internacional. Maria da Penha, através do movimento de mulheres, foi à Corte Americana e conseguiu que a Corte condenasse o Brasil para que fizesse uma lei. É uma lei completa, que traz o tratamento digno à mulher vítima e a possibilidade de prisão e medida protetiva. Não sei quantas mulheres tiveram suas vidas poupadas nestes 13 anos da lei, mas, com certeza, muitas. Infelizmente o mundo tem enraizado na cultura o patriarcado, o homem faz o que quiser da mulher e ela não pode deixar dele. A partir do momento em que há a dominação masculina e, por outro lado, o enfraquecimento do feminino ou menosprezo, tem um prato cheio para ocorrência doméstica e familiar e, principalmente, para o feminicídio. A mulher que ousa sair da condição de “escrava do seu senhor” está sujeita à violência, agressão e morte.  

Única – Temos um aumento no registro de ocorrências ano após ano. As mulheres encorajando e buscando canais de denúncias. Mas ainda há aquelas que não compreendem o que é o ciclo de violência e o que é um relacionamento abusivo, acabando por ser vítima por anos, sem ao menos notar. De que forma trabalhar esta compreensão?  

Maria Erotides – A violência contra a mulher é um iceberg. Para cada caso denunciado por mulheres, há pelo menos 15 a 18 outros que não foram denunciados. Os números que entendemos como gritantes, não correspondem com a realidade. Debaixo do que chamamos de “sagrada família”, do endeusamento da família, ainda existe a violência reprimida. Não se denuncia e a mulher continua apanhando em nome da “manutenção da família”. Isso é muito difícil vencer. Há mulheres que aceitam a violência entendendo que é direito do marido exigir dela esta conduta. Ela se sente submissa. Esse número aumentado de denúncias, não posso dizer se realmente houve aumento ou se quer dizer que as mulheres estão sendo conscientizadas de que não deve permanecer num relacionamento violento. Quero acreditar que a face oculta da violência esteja se mostrando. Trabalhar no âmbito primário é importante, mas precisamos também focar no secundário. Nós da coordenadoria da Mulher do TJ temos o papel de formular as políticas públicas do poder judiciário nesta causa do combate à violência doméstica e familiar. Nosso papel é conscientizar a mulher. Não queremos destruir famílias. Pelo contrário, queremos que elas sejam cada vez mais felizes, mais igualitárias. Que seja cumprida a Constituição e Tratados Internacionais de Direitos Humanos. A violência contra a mulher no âmbito doméstico e familiar é uma violação de direitos humanos e à própria Constituição. Nenhuma democracia pode existir acontecendo isso. Nenhuma democracia é legítima, quando as mulheres sofrem algum tipo de violência, especialmente violência psicológica dentro de casa.  

“A violência doméstica e familiar não escolhe nível social e nem de escolaridade. Ela é produto de um caldo de cultura”, destaca a desembargadora Maria Erotides.

Única – “Em briga de marido e mulher não se mete a colher”. No senso comum, as pessoas ainda dizem que não vão se meter “porque amanhã a mulher vai estar com o companheiro” ou “porque ela gosta de apanhar e não quer sair do relacionamento”. Estes pensamentos precisam ser mudados?  

Maria Erotides – Nenhuma mulher gosta de apanhar, ninguém gosta. É este caldo de cultura que precisamos modificar. Este adágio popular de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, precisa ser mudado. É em nome deste adágio que muitos feminicídios acontecem. Aqueles que silenciaram são coautores por omissão. Se você vê, se sabe que está acontecendo um espancamento, uma violação, e você silencia por comodismo, silencia porque acha que ela gosta de apanhar, você está sendo coautor. Essa omissão para mim é uma omissão dolosa. Eu penso que temos que ver os casos e nos colocar no lugar, fazer esta reflexão. E se fosse a minha filha? E se fosse eu? Se fosse a minha neta, minha irmã? Gostaria que esta vizinha que viu e que sabe continuasse calada? Nós podemos dizer que as denúncias salvam vidas. Hoje há tantos meios de denunciar, até sem se identificar. Muitas vezes a mulher não tem forças para denunciar e, quando há uma denúncia por terceiros, a coisa muda. A mulher vê uma luz no fim do túnel e se encoraja. A omissão não é o melhor caminho. Quando uma mulher apanha, são todas as mulheres que estão apanhando. Se hoje é ela, amanhã pode até não ser você, mas pode ser sua filha, neta, irmã.  

Única – O feminicídio é o último grau da violência contra a mulher. A realidade é nada animadora. Cada dia mais temos nossas mulheres sendo mortas e com requintes de crueldade. É possível mudar este cenário? Porque chegamos a este patamar de tanta violência contra a mulher?  

Maria Erotides – É um avanço termos um crime tipificado com elementares do tipo de feminicídio, é um avanço uma apenação mais grave. Porque o ódio? O ódio no feminicídio é pelo fato de a mulher ser mulher, do ser mulher. É o elemento humano que se sente superior, que não pode ser contrariado nas suas vontades e que não admite que “um ser tão inferior” o afronte. A gente vê isso principalmente pelos locais em que ocorrem as lesões no feminicídio. As lesões ocorrem no pescoço, como se quisesse calar a voz, como se a mulher não tivesse direito de respirar, pois estaria afrontado a “respiração superior”. Outra lesão comum é no peito, justamente pela mama. E no ventre, por causa do útero. O crime de feminicídio é um crime de ódio contra as mulheres e a localização das lesões mostram como isso acontece. O cadáver no feminicídio fala por si. Por isso a importância de os crimes de feminicídio serem julgados no Tribunal do Júri, local onde a voz do povo é ouvida.  

Única - Mato Grosso tem um número muito baixo de delegacias especializadas da mulher e não são 24 horas. Isso seria um entrave para denúncias? Por outro lado, em outras delegacias faltam pessoas especializadas para atendimento. O que precisamos melhorar?  

Maria Erotides – O número de delegacias especializadas é um número pequeno, como também o número de varas especializadas. Mas há os núcleos de atendimento à mulher nos locais onde não há delegacias especializadas. Hoje está sendo até objeto de estudo da Câmara Setorial Temática das Mulheres na Assembleia Legislativa, para que os municípios que tenham um número maior que 30 mil habitantes tenham este núcleo de atendimento. Ele é composto por delegado, escrivão e investigadores, que se capacitam no atendimento da mulher para uma escuta qualificada. A mesma coisa acontece no Judiciário. Embora não tenham as varas exclusivas da mulher, tem juízes que atendem duas ou três competências, mas que são capacitados para atender a mulher.

Única – Desembargadora, fale um pouco sobre a Câmara Setorial na Assembleia. Quais são os encaminhamentos e o que será possível com o término dos trabalhos?

“Se você vê, se sabe que está acontecendo um espancamento, uma violação, e você silencia por comodismo, silencia porque acha que ela gosta de apanhar, você está sendo coautor”, reforça a desembargadora.

Maria Erotides – A proposta foi do deputado Wilson Santos, que viu a necessidade de o Estado fazer uma revisão em relação às leis que existem para a mulher, se elas realmente atendem a todos os segmentos. É um enorme avanço. O presidente da Assembleia Legislativa deu 180 dias para que fizéssemos um levantamento das necessidades. A avaliação das legislações, a proposta de mudança e a proposição de políticas públicas. Fizemos um planejamento estratégico muito ousado, mapeando todos os segmentos de mulheres e realizando audiências públicas. No mês de novembro ou dezembro, será realizado um seminário em Cuiabá mostrando todos os resultados que levantamos. É um trabalho muito bom. Mapeamos legislações de 1992 até agora e apresentamos novas proposições. Tenho muita esperança de que a Assembleia transforme essa câmara temática em uma comissão permanente para que o trabalho tenha continuidade.

Única – Fale um pouco da necessidade de se trabalhar o agressor. Vemos muitos homens que praticaram crimes contra mulheres, em outros relacionamentos, dando continuidade às violências.

Maria Erotides – Não tenho dúvida de que o agressor precisa ser trabalhado e que deve ter a oportunidade de entender porque ele chegou a isso. Temos casos provados do agressor que mudou três vezes de companheira e agrediu as três. O problema não é o ódio daquela companheira, é o ódio contra a mulher em si. É preciso ser trabalhado. Ele precisa entender porque age assim, compreender e fazer realmente uma mudança dentro dele. Os juízes têm feito isso nos grupos reflexivos com bastante coragem.

Única – Apesar dos grandes avanços ao longo dos anos, ainda é difícil ser mulher?

Maria Erotides – É uma grande benção de Deus. É muito bonito ser mulher, nossa missão é muito grande. Nosso trabalho nesta construção do fortalecimento da mulher, de um mundo igualitário, neste enfrentamento da violência, é uma coisa que motiva viver. É difícil porque nós mulheres ainda temos a questão de horário de trabalho, temos que dividir esta responsabilidade, que acaba sendo só nossa. Mas estamos construindo um mundo em que homens e mulheres se respeitem e sejam tratados em igualdade de direitos.

Única – O quanto ainda precisamos avançar para que a violência contra a mulher fique no passado?

Maria Erotides – Ainda temos muito que caminhar. Quando a gente pensa que já fez, vê episódios que abalam. A gente vê o retrocesso quando ainda acontecem feminicídios. Quando vemos, no nosso grupo de atuação, piadas que diminuem o feminino, que ridicularizam o posicionamento de mulheres. Quando a gente nota que as próprias mulheres não votam em mulheres. Precisamos ter mulheres cada vez mais nos postos políticos, em cargos que possam fazer mudanças políticas. Precisamos ir às escolas e começar também dentro da nossa casa, tratando homens e mulheres com o mesmo respeito. Homem não é menos homem porque varre o chão, porque ele lava as louças. Não podemos permitir piadinhas, gracejos. Isso não pode nos fazer sorrir, ao contrário, temos que entender que isso é discriminatório.

Única – Para as mulheres que ainda não se encorajaram a denunciar, qual mensagem a senhora deixa?

Maria Erotides – A mulher, para sair do contexto de violência, precisa de ajuda, de preferência de um profissional que saiba ajudá-la a sair do ciclo da violência. Precisa procurar psicóloga, assistência social, CREAs, CRAS, Defensoria Pública, Ministério Público, juízes. Não fiquem num relacionamento abusivo achando que você está beneficiando seu filho. As estatísticas mostram que os filhos da violência doméstica são muito infelizes. Eles não conseguem vencer isso se a mãe não conseguiu superar. O ato da denúncia, de sair do sofrimento, vai encorajar seus filhos, fazer com que eles sejam lutadores. Eles podem sofrer a separação, mas isso vai fazer com que eles sejam mais capazes.

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