Daniel Grandinetti - Psicólogo clínico
Para encantar-se com alguém, primeiro é necessário conhecê-lo pouco; muito pouco. A seguir, dentre o pouco que conhecemos, destacar o que mais nos chama a atenção. Logo após, preenche-se o vazio de tudo que desconhecemos com expectativas fantasiosas. Assim, os atributos que destacamos inicialmente são colocados contra um pano de fundo mágico, tornando-se qualidades encantadoras numa pessoa especial. É dessa forma que nos encantamos com o sorriso, a beleza, a voz ou o jeito de falar, o perfume, o cruzar de pernas, a inteligência, a gentileza e tantos outros atributos que magicamente se tornam signos de alguém que subitamente nos pareceu especial.
Não há forma mais segura de se sentir especial que ser correspondido por quem escolhemos. Desejamos nos sentir especiais, e para tanto buscamos o especial nos outros ao invés de em nós. Mas só encontramos no outro qualidades especiais quando o desconhecido sobre ele supera o conhecido. Não há qualidade pessoal que nos pareça especial a não ser sob o fundo das expectativas mais fantasiosas. Pois não há nada que permaneça especial depois de se tornar habitual. E mesmo a pessoa de nossos sonhos um dia se nos torna habitual.
O habitual nos é conhecido. Do conhecido, sabemos o que esperar; sabemos, principalmente, que o possível de se esperar nem sempre é o que desejamos. Do desconhecido, estamos autorizados a esperar o que quisermos, e damos asas à imaginação. O conhecido nos restringe; o desconhecido nos liberta. Pois o habitual é rotineiro, e não há nada especial na rotina, ao passo que o inabitual nos surpreende e abre as portas ao impossível.
Contudo, o habitual cria raízes. Ele é a presença sempre presente sem a qual perdemos a referência. O nome dessa presença é afeto, e o afeto torna o habitual especial. Habituar-se a alguém é descobrir em nós o que lhe torna especial: nosso afeto por ele. Afeiçoar-se é habituar-se à presença de quem já se nos tornou comum. Mas não um comum qualquer: o comum que descobrimos muito diferente de nós. Pois nossa alma gêmea, aquela que se parece conosco em tudo, só existe sob o efeito do encanto. E o encantamento passa, restando aquele que nos é diferente, às vezes antagônico, mas que já se nos tornou comum, e sem o qual não sabemos quem somos.
Mas nem sempre o encantamento cede lugar ao afeto. Para tanto, é preciso que o especial se torne comum com graça, e que as almas gêmeas divirjam com humor. O dar ares de graça ao comum faz a graciosidade, e o enfrentar com humor as divergências faz a afinidade. Graciosidade e afinidade são os elementos do afeto. Por sua vez, se ao comum é retirado toda a graça e se às divergências enfrentam-se com indisposição, o encantamento desencanta-se. Do desencanto, resta apenas o desejo de encantar-se uma vez mais pelo desconhecido que cavalga a promessa do impossível.
Afeiçoar-se é um exercício de humildade. É abdicar da ambição de ser alçado às esferas mais distintas da abóbada celestial por alguém especial e aprender a caminhar diariamente pelo chão empoeirado da rotina ao lado de quem nos é comum - tão comum que já virou comunhão; tão habitual que já nos habita; tão rotineiro que parece ter sempre estado aqui.
Daniel Grandinetti - Psicólogo clínico
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